publicado em: 25/03/2020
Pandemia COVID-19
Nos treinamentos que recebeu nos últimos dias sobre o atendimento a pacientes com suspeita de coronavírus, uma enfermeira do Hospital São Paulo, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) foi informada de que um dos equipamentos de proteção, a máscara N95 (cujo filtro bloqueia até 95% das partículas em suspensão), terá uso restrito.
“Fomos orientadas a utilizar a máscara por sete dias, o que eu achei um absurdo. Segundo o fabricante, é por período. Vamos ter que guardar a nossa máscara e trocar a cada semana. Se não tiver nenhum dano, a gente vai permanecer com ela”, diz a enfermeira, cuja identidade será preservada pela reportagem.
A validade dessa máscara, de maior proteção que a cirúrgica, varia de acordo com cada situação e cada fabricante. Ela deve ser guardada em sacos de papel ou de plástico (desde que furados) e, dependendo da condição em que seja usada, deve ser descartada imediatamente, segundo um dos fabricantes.
Com tantas variáveis em uma situação de pandemia e quase 2 milhões de profissionais de enfermagem distribuídos pelo país, as dúvidas sobre protocolos são um dos problemas enfrentados pela classe no Brasil.
No país, 84,7% dos auxiliares e técnicos de enfermagem são mulheres. Entre os profissionais com ensino superior, elas são 86,2%, segundo a Pesquisa Perfil da Enfermagem, do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
[ x ]
O Sindicato dos Enfermeiros do Rio de Janeiro denunciou na semana passada a falta de um “protocolo de orientação, capaz de disciplinar a utilização e o descarte dos equipamentos”, com exceção feita a um hospital da rede federal, que já possui as normas. A entidade também afirma que faltam máscaras cirúrgicas e N95, álcool em gel e até mesmo sabão e papel. “Enfermeiros e trabalhadores da saúde estão com déficit de equipamento de proteção individual (EPI). Precisamos de um protocolo do poder público sobre o que vai ser feito nas unidades básicas e nas redes de emergência”, diz Líbia Bellusci, vice-presidente do sindicato.
“O que dá medo é a nossa saturação mental e física. Nós já trabalhamos em um ambiente bem estressante e, com uma doença tão perigosa, a insegurança também aumenta. A gente não sabe o que vem por aí”, desabafa a enfermeira, que trabalha na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital São Paulo. Procurada, a unidade informou que “todo o corpo de saúde do Hospital São Paulo está devidamente orientado e segue o protocolo de atendimento determinado pelo Ministério da Saúde”.
Com o aumento da demanda, a enfermeira do Hospital de São Paulo conta que a orientação é reservar uma área da UTI para pacientes com coronavírus e selecionar enfermeiras só para esses casos, com o objetivo de diminuir a possibilidade de transmissão da doença entre outros pacientes do hospital.
“Inevitavelmente a categoria estará na linha de frente, em contato 24 horas com casos suspeitos e confirmados. Nós estamos preocupados e buscando preservar ao máximo os profissionais”, afirma Walkirio Almeida, coordenador do Comitê de Gestão da Crise do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen).
Para o conselho, as principais preocupações com os profissionais de enfermagem são os EPIs, a capacitação para os protocolos determinados pelo Ministério da Saúde e garantir que eles estejam preparados para usar os equipamentos. “Não adianta oferecer equipamentos de proteção e não preparar os profissionais para usá-los corretamente”, diz Almeida. O conselho vai permanecer com sua sede e conselhos regionais abertos para realizar fiscalizações e atender às demand as dos profissionais.
Em Pernambuco, enfermeiros que trabalham em unidades de saúde da rede pública ameaçavam entrar em greve. De acordo com o sindicato da classe no estado, faltam equipamentos básicos de proteção, como máscaras e aventais, além de insumos como álcool em gel e sabão. No sábado (21), o Tribunal de Justiça de Pernambuco determinou a suspensão da greve anunciada pelo Sindicato dos Enfermeiros no Estado de Pernambuco (SEEPE-PE) sob pena de multa.
“Estamos em estado de greve e a paralisação só ocorrerá na falta de EPIs”, diz Ludmila Outtes, presidente do SEEPE. “Infelizmente é comum faltar material: luva, máscara, seringa, agulha. Só que, agora, além da insatisfação, nós corremos risco de vida”, afirma.
“Precisamos proteger a nossa vida também. Além disso, é preciso controlar a disseminação. Como a gente atende vários pacientes ao dia, se eu pegar o vírus, vou transmitir para várias pessoas que eu atendo”, completa Outtes.
A Secretaria de Saúde do estado afirma que ordenou a compra emergencial de equipamentos de proteção individual e diz que está orientando os profissionais sobre o seu uso. No Rio de Janeiro, a secretaria do estado anunciou, na quarta-feira (18), a compra de 1,5 milhão de máscaras cirúrgicas, 300 mil óculos de proteção e 600 mil aventais.
Para a diretora do sindicato dos enfermeiros do estado da Bahia, Tatiane Araújo, a questão das condições profissionais para as enfermeiras inclui, além da estrutura e dos equipamentos, a garantia de horas de descanso. “Uma profissional cansada fica mais propensa a cometer um erro. As unidades de saúde têm que garantir as condições de trabalho. Tudo que a Organização Mundial da Saúde vem divulgando tem que ser cumprido.”
Um dos receios da enfermeira entrevistada pela reportagem no Hospital São Paulo é o aumento das dificuldades que as profissionais já sentem na rotina de trabalho, mesmo sem a demanda de pacientes com coronavírus. “Em hospital público sempre há escassez de insumos. Se já está assim, imagine quando começar mesmo o surto de vez. O que esperar?”, questiona.
Entre as enfermeiras, as condições de trabalho (como falta de equipamentos adequados) representam 46,8% dos motivos que definem a precarização do trabalho da categoria. Para técnicos e auxiliares de enfermagem, o ritmo e pressão da atividade respondem por outros 51,2%, segundo a pesquisa Precarização do trabalho de enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem nos hospitais públicos, da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
Tatiane Araújo, também professora adjunta da Escola de Enfermagem da UFBA e uma das autoras do estudo, lembra que o principal responsável pelo suporte aos casos da epidemia será o serviço público de saúde, já que atende a 75% dos brasileiros. “A pandemia vai servir para jogar luz em alguns problemas que já existem: a falta de EPIs ou EPIs inadequados, além das condições de trabalho insalubres. Há serviços de saúde em que a ventilação e até o piso são inadequados”, completa.
O Conselho Federal de Enfermagem indica que, para cada estágio de risco em uma unidade hospitalar, o tipo de equipamento de proteção é diferente. Segundo a cartilha “Protocolo de Manejo Clínico para o Novo Coronavírus”, do Ministério da Saúde, profissionais responsáveis pelo atendimento de casos suspeitos e confirmados deverão higienizar as mãos com álcool com frequência, utilizar óculos de proteção ou protetor facial, máscara, avental impermeável de mangas longas e luva de procedimento.
UMA PROFISSÃO ‘MATERNAL’?
Tatiane Araújo também destaca como a diferença imposta pelos papéis desempenhados pelos gêneros na sociedade impacta as profissionais da enfermagem: “Infelizmente, a questão do gênero influencia no reconhecimento, porque o trabalho da mulher é visto com menos valor que o do homem. Há ainda aquele ideal culturalmente construído de que a mulher nasceu para cuidar, para ser mãe, para dar carinho. No Dia Internacional da Enfermeira, você vê homenagens associando a enfermeira ao anjo, amor, caridade, mas nunca à profissão, ao trabalho, à qualidade técnica.”
Ela ressalta que as famílias destas profissionais —inclusive os filhos que estão em casa, sem aulas— também são colocadas em risco e lembra a tradicional imagem de emergências lotadas no SUS (Sistema Único de Saúde) em grandes cidades, com carência de profissionais para cuidar de tantos pacientes. “As trabalhadoras muitas vezes não têm condições de sequer parar para lavar as mãos. Os serviços, infelizmente, entendem que uma economia que eles podem fazer é cortar pessoal”.
A resolução 543/2017 do Cofen determina o número adequado de profissionais para um atendimento de qualidade. Em UTIs, por exemplo, é necessário um profissional de enfermagem para cada paciente. A infecção de profissionais da saúde pelo novo coronavírus também aumenta o risco de redução de profissionais, já que eles precisam entrar em quarentena quando contaminados.
Na semana passada, viralizou um post da enfermeira italiana Alessia Bonari, com um relato de sua rotina de trabalho exaustiva em meio à crise causada pelo coronavírus na cidade de Milão. “Estou fisicamente cansada porque os dispositivos de proteção machucam, o jaleco me faz suar e, uma vez vestida, não posso mais ir ao banheiro ou beber água por seis horas”, contou a enfermeira, com o rosto machucado pelo equipamento de proteção.
Mas Tatiana Araújo destaca uma diferença importante do sistema de saúde italiano e brasileiro, que por um lado favorece as profissionais nacionais, mas por outro as expõe mais do que no país europeu. “Na Itália o sistema de saúde é centralizado no médico. As enfermeiras têm pouquíssima possibilidade de atuação profissional. Aqui, estão envolvidas na vigilância, na estratégia de saúde da família, no rastreamento de casos. Elas podem dar as primeiras informações, os primeiros cuidados. Isso as coloca linhas de frente, então estão mais expostas ao coronavírus e a qualquer doença.”
Nos Estados Unidos, Bonnie Castillo, diretora do maior sindicato nacional da categoria, reclamou da falta de condições adequadas de trabalho. “Enfermeiros estão trabalhando com proteções inadequadas —de respiradores a máscaras, passando por uniformes e aventais”. Ela afirma que alguns estão recebendo apenas máscaras cirúrgicas, aventais de papel e um par de luvas: “Isso não vai proteger o profissional da enfermagem nem ninguém”. O país já computou mais de 35 mil casos e quase 500 mortes.
Na China, as condições de trabalho chegaram a níveis extremos. Enfermeiras do distrito de Wuhan, epicentro do coronavírus no país, cortaram os cabelos e rasparam a cabeça por falta de suprimentos e equipamentos de proteção. Para continuar trabalhando, elas usaram fraldas para adultos, por não ter tempo de ir ao banheiro e tomaram pílulas anticoncepcionais para retardar seus ciclos menstruais, segundo relatos do New York Times.
Fonte: Folha de SP
Foto: Adriano Machado – 7.mar.2020/Reuters